terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Azul

De repente reparo que há vida lá fora. Milhares delas, eu diria. Às vezes penso que sei lá. Eu penso demais. Mas não sei até que ponto essas vidas estão sendo vividas, sabe? Eu não sei.

É um tal de despertador matando a gente. Uns sonos que existem, mas não deixam dormir. É barulho de carro no asfalto e a gente aqui: a pé. É o fim do ano se aproximando sem ninguém entender onde ficou o começo. Tudo muito rápido...

Frases pela metade. Sentimentos no meio do caminho. Um tal de tempo que não volta e outro que não chega. E eu, pintando minha loucura de azul.


CAOS


















Um pouco. No meio do nada
De um tempo aquele em que não éramos descomedidos.
Não éramos laços
Nem pontes, abismos
Simplesmente não éramos!

Em tudo que ficou no vazio
No meio do caos
No meio da lama
Na infinita espera dos dias que não vêm

Em livros velhos com páginas rasgadas
Espalhando ecos das palavras perdidas 
Na ausência dos móveis
Na ausência tua
Nos meus fantasmas
E em cada passo confuso

É no meio de mim, sem rimas, 
Que ficou uma parte
É no meio de ti, contudo
Que ficou o resto.

(Dalila Lemos)

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

NO ESCURO

A lâmpada queimou. E no escuro eu comecei a pensar no exagero de me resumir às roupas espalhadas pelo colchão. Estava tarde. Eu podia sentir o frescor do vento, talvez três ou quatro horas da madrugada, e uma melodia rude, lenta, martelando no tímpano. Eu precisava sair dali. Mas eu não queria, e logo ficaria claro, a luz da manhã traria uma falsa sensação de conforto e teria o barulho dos carros, dos pássaros, quem sabe de algumas crianças lutando contra a responsabilidade de ir à escola para se tornar sei lá o quê. A gente nunca sabe - nem do outro, nem da gente.

Eu não fazia ideia de nada, nem de quantas horas passavam enquanto eu pensava nisso tudo, por tantas vezes repetidas em toda minha vida. Não sabia do tempo. Abri uma garrafa de vinho, segurei a taça em frente ao espelho, sem me reconhecer no entanto. Vi o reflexo de alguém que já não habitava o meu corpo. A pele pálida, maquiagem borrada e o rosto inchado, revelando um estado de autocrítica imensurável por todos os sinais ignorados no mundo. Quantos segundos? Pensei. Talvez o suficiente pra cobrir o vazio com alguns panos que ficaram pra trás, sem pausa, no meio do caminho.

Havia muito espaço entre uma coisa e outra que se transformava dentro de mim. Tantos discos e filmes e roupas e cenas. Tanta gente! E grito e eco e os nós desatados com o movimento dos ponteiros. Eu sentia medo a cada gole, mas já não conseguia voltar atrás. Não me lembrava o modo. Não me identificava entre os traços embaçados, tragos de cigarro, os lábios roxos e o estômago embrulhado de lembranças. E aquele som, hostil, fazendo cada vez mais barulho, enaltecendo a manhã que se aproximava não de mim, mas de tudo que havia em mim.

No momento em que senti a garganta seca, mesmo já na quarta taça, comecei a ter uma vaga ideia do que ficou incompleto. E era muito. Podia rasgar lírios nos meus textos, papéis velhos, aquilo tudo que eu me esquecia o nome e que transbordava. O celular tocava e eu deixava. Batiam a minha porta e eu deixava. Eu deixava os verbos sem conjugação, deixava ir, me deixava aos poucos. Eu era menos do que podia ser, mas estava além de onde podia estar. Talvez sentisse apenas sono, mas era preciso estratégia: um grande esforço para comprimir as pupilas, desacelerar os batimentos e perder as contas de quantas vezes foi necessário fazer de conta, porque a realidade dói. E foi então que tudo ficou claro. Ainda que com o sol ultrapassando a cortina, me cegando, fazendo com que eu implorasse por mais um pouco - Só mais um pouco! Adormecer não bastava para os sonhos que eu construía com os olhos entreabertos.

(Dalila Lemos)

sexta-feira, 27 de julho de 2018

ALÉM DO VENTO

Foi pipa no céu. O movimento leve das coisas que o vento ergue, que o vento leva. A gente nem sempre compreende quando não se basta: derrama o abecedário e observa, estático, a imensidão do universo. 

A princípio assusta porque não cabe tudo que não foi possível fazer. As três folhas da prova de matemática, uma cidade, a Aurora Boreal, 21 km. Não dá para conter as noites mal dormidas de quando o tempo escapou pelos dedos sem aviso prévio ou daquilo que era muito e se despediu.

É normal não entender. Nem Noturno de Chopin exclamando reticências nem a desconexão do quanto pesa quando você não deve, mas quer.

A vida tem disso em cada lacuna. Tem um espaço. Um amigo que foi embora, um capítulo não lido, um nó na garganta de outros nós que se desfizeram no meia da rua. Somos vulneráveis pra transcender limites!

Olhando pra cima dá pra perceber que o que machuca nem sempre é um tanto; às vezes é uma gota, que cai delicadamente nas costas. Às vezes é a dor do outro ou o tédio de limpar o tapete por obrigação porque aprendemos a ser adultos. E entre tudo isso, tem muito de todo mundo. Em cada um tem um sorriso que marca, uma flor no jardim, um momento que deveria continuar ali.

Se a pipa não cai, é física. Todo restante é a gente.

(Dalila Lemos)



segunda-feira, 16 de julho de 2018

EPÍLOGO

A uma dúzia de palavrões ele se resumia. Saliva ardendo cada dose de cachaça e, mesmo que ébrio ou sóbrio ou coisa nenhuma, para si justificava: instinto, que perdura.

Já passava das três. E quando chega qualquer hora, não há instante para o domínio. Tem um quê de muro de concreto, corpo, carne, imensidão do desejo. E as vadias! As malditas vadias!

Dava pra ver poeira nos livros. Eles não significavam nada, absolutamente nada sob a luz tênue no balcão. O que importava era o cheiro por debaixo do vestido, a língua trincando entre os dentes, mais uma dose, o impulso. E a coisa ia de tal forma, que só sobrava sinal de silêncio. As palavras misturavam-se ao pó, caladas à força no epílogo.

A recusa se perdia porque negando eram putas, e aceitando eram também. Do constrangimento à excitação: verdadeiras putinhas, quase imprestáveis não fosse uma ou outra pretensão. Vadiazinhas de merda, frustradas, visionárias; consumidas pela ânsia de um lençol amarrotado, um chão gélido, uma parede suja e um resto qualquer de solidão.

Mas a conta sempre fechava com conivência à nostalgia. Havia incessantemente uma rua qualquer, um pássaro qualquer, um banco de praça qualquer e um qualquer de qualquer jeito que trazia melancolia. Às vezes o café, a leveza de uma conversa, a delicadeza do cuidado. Às vezes o próprio teto, uma melodia, o calor do abraço, o sol refletindo saudade. Ah, como seriam putas as tuas putas se ao menos putas fossem!

(Dalila Lemos)

quarta-feira, 11 de julho de 2018

FUGA

Eu olhei as nuvens refletindo na poça d'água que se formou no desgaste do asfalto. Pensei sobre a vida e sobre o que estou fazendo dela, com esse coração que fica onde acha o lado bom em um canto. Eu, que sempre enfrentei tudo, me vi em desespero.

E ainda que sorrindo - em total desespero - entre crises e fantasmas e barulho de chuva e um tanto de frio e um pouco de mim embaçado, supliquei.

Eu que já enfrentei a distância, os codinomes, as falhas, as consequências. Eu que desafiei os deuses, encarei o tombo, superei o abuso, confrontei as aparências, fitei o perigo. Eu, que me desacelero quando as nuvens passeiam do céu ao chão, só imploro que, ao menos uma vez, tenha o direito da fuga.

(Dalila Lemos)

sexta-feira, 6 de julho de 2018

190 NÃO É

Remédio. Gadernal. Telefone, ligação, ambulância. Qual o número??? Calma! Que tal tentar um calmante... Mas... Alguém pode me explicar o que está acontecendo?

O velho enlouqueceu, dizia Soraia. Como assim enlouqueceu? Perguntava César. Com um ar de superioridade, a outra respondia: ora, meu caro, enlouquece quando atinge a extravagância da aventura insensata e recorre à alienação mental.

Já passara da hora de alguém ser mais claro. A outra tinha visto o começo e acabou expondo a situação como uma tragédia. Parecia dar conta dos vultos, das sombras na parede, daquele maldito cimento que ninguém entendia como tinha aparecido na história. Acabou nos levando a uma sala, tão abafada e que só aumentava nosso desespero.

Um dedo apontou. Lá estava o velho! Numa cadeira de madeira lixada, amarrado com uma corda grossa e os pés afundados numa bacia de cimento. O certo seria ter uma cobaia por perto, porque, na verdade, ele não se tornaria escravo e prisioneiro de si. Mas não havia ninguém .

Tá bom, a psicologia precisava entrar em ação imediatamente. Fácil é entender que os velhos regridem, mas como explicar a insanidade?!? Dizia ele que não estava louco: era amor. Amor mortal! Sentia-se como se a vida não expandisse pra nada, pra nenhum lugar, e ele não passasse de alguém testando seus limites além do estado de estar parado. Não havia mais sorrisos, não ouvia mais canções, não falava mais bobagens. O velho estava preso a alguém que não voltará jamais.

Mal passaram aqueles dois dias e teve mais um enterro. Aquela choradeira que só vendo! Os nervos a explodirem!

Remédio? Gadernal? Telefone? Ligação? Qual o número da ambulância? Poderiam tentar um calmante... Mas... Acho melhor um novo coração.

(Dalila Lemos)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

TRAVESSIA

Não foi em dias de sol que eu me tornei o que sou hoje. Foi na dor. Foi enquanto eu observava a chuva e pensava nos meus passos, molhados, caminhando em busca de algo maior. Às vezes, quase impossibilitada de seguir em frente, eu parava. Me escondia. Me protegia da tempestade. Depois eu acreditava que uma hora isso tudo ia passar. E passava. Eu via tudo passando por mim.

Passavam ressentimentos. Filmes na minha cabeça, com enredos que eu não desejei que terminassem (e terminaram). Passavam cenas que eu nunca imaginei que viveria (e vivi). Músicas que já me angustiaram, palavras que eu não decifrava... Passava o trânsito, o caos, o risco, o tempo - tal inconstante qual o medo.

Tudo que sou é travessia. Eu deixo amor por entre coisas que passam. E eu deixo amor por onde me atravessam.


(DALILA LEMOS)

quinta-feira, 26 de outubro de 2017

NADA É NÃO

A energia que você espalha é a mesma que você recebe". Seria cômico se não fosse o fato de que estou espalhando muita energia louca por aí. E tenho atraído os seres mais insanos da crosta terrestre: de humanos a pernilongos - todos, sem exceção, completamente fora da casinha!

Meu tempo é feito de momentos que tinham tudo pra dar certo, não fosse uma interferência externa na frequência da paz interior. Algo como entrar num ônibus, exausta, e conviver com o bêbado bipolar. Ora esperneia canções de amor, ora se diz autoridade e cospe ameaças alcoólicas pela janela.

Eu só queria dizer que não. Mesmo que eu diga absolutamente nada, quero dizer que nada é não. É um não querer ser incomodada na necessidade do descanso. É um não querer saber relatos pessoais dos que escandalizam conversas ao celular. É um não querer nada, entende? Porque nada é não. E meu não é ponto. Eu hein!!! Às vezes quero me despir dessa loucura que é a vida, mesmo sendo a minha melhor vestimenta. Não quero ser convertida pelos fanáticos religiosos, tampouco comprar palavra cruzada na porta das Lojas Americanas. 

Não tenho interesse algum em trocar meu plano de celular, muito menos aprovar crédito especial no banco (de especial já basta meu roteiro de existência). Se nada é não, significa que não quero 3 por 10 quando só preciso de 01. Às vezes, 01 minuto de dispersão ou, quem sabe, 01 minuto da minha melhor melhor dose de endorfina. E quando não quero nada, nem o rumo me escapa: sento na beira da calçada, entre os insetos da estação, e encho meu cérebro de vazio. Então a loucura me leva.

(DALILA LEMOS)

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

DESCULPE O TRANSTORNO, MAS PRECISO FALAR DE EXU



Não lembro onde o conheci. Essa frase pode soar preocupante se você imaginar a imensidão do quanto estou me lixando pra isso. Ele usava touca preta, bermuda e tinha um piercing no queixo. O restante da minha falta de memória é um motivo deveras justo para que qualquer pessoa confie em mim: não haverá fofoca, pois não me lembrarei.

Os olhos, sempre arregalados e em tons diferentes de verde, deixavam claro que os amigos dele conseguiam reparar detalhes que eu mal cogitava. Mas eram de passarinho - isso eu sabia bem. E não pense que o Gregório é o diferentão da paixão à primeira vista... Eu também passei por isso (e confesso: acho que foi macumba).

Começamos a re-namorar no dia 27 de Novembro. Ele pensou que fosse dia 20. Conclusão: ta tudo bem na fila de espera do Alzheimer.

Não vimos todas as séries. Longe disso: eu dormi e continuarei dormindo no meio delas. Inclusive, durante as minhas favoritas. E várias vezes. Não me encham o saco. Obrigada, de nada.

Não fizemos receitas de risoto. Fizemos farofa. E a dele é a melhor que eu já experimentei.

Não queimamos nenhuma panela de comida porque meu teflon das Lojas Brasil é coisa linda de se usar. Não escolhemos móveis sem saber se eles passariam na porta, mas, em compensação, tomamos incontáveis cervejas sem saber se caberiam no estômago.

Não fizemos uma dúzia de amigos novos porque nossos amigos são antigos e cheios de mania. Melhor não arriscar! Também nunca fizemos curta - a sociedade não está preparada para o nosso deboche.

Sofremos com os bares fechados, rimos com litrão a sete reais. Não viajamos o mundo, mas descobrimos o significado de "Uhulll" sem sair de casa. Das dez músicas que mais gosto, sete ele se nega a acreditar (e isso inclui "Não Ter", da Sandy e do Júnior). As outras três talvez ele tenha me mostrado, mas eu também não me lembro.

Aprendi o que era feminismo na marra, e não foi com ele. Agradeço! Cisgênero, gaslighting, heteronormativade e mansplaining também. Em contrapartida, graças a ele eu nunca esqueci que a capital de Alagoas é Manaus. Não, péra! Ai meu Deus.

Uma vez terminamos. E não foi fácil. Parecia que pra sempre ele ia fazer falta. Eu estava certa! Se a gente ao menos tivesse tido um filho, pensava, o encosto seria eu.

Essa semana vi a gripe dele passando pra mim - não por acaso uma história de azar. Achei que ia espirrar tudo de novo! E o que me deu foi uma felicidade profunda de poder dividir esses perdigotos. Sabe como é né, eu sou Dalila. Clarices devem ser mais elegantes.